sexta-feira, 25 de abril de 2008

Andando em rastro de corno

Poderia dizer que este foi um dia qualquer? Sim. Assim eu pensava quando saí de casa por volta das 7h30min da manhã em direção à Cruz das Almas para cobrir uma provável invasão do MST ao campus da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia).
Ainda com o rosto marcado pelo lençol de uma noite mal dormida, saí de casa com um cigarro na mão tentando disfarçar a fome que sentia. Com quase nenhum dinheiro no bolso atravessei a ponte com um andar cambaleante que me levava até o ponto dos transportes alternativos onde um colega me esperava, ou pelo menos deveria estar. Após um longa espera de cinco minutos, tempo suficiente para fumar mais um cigarro e diminuir a apreensão, vejo João, o amigo esperado, descer de um carro que o trazia de Feira de Santana. Até que enfim.
Subimos no carro, se não me engano uma Besta, sem suspeitar que aquele também pudesse ser meu nome ao longo do dia, e seguimos muito entusiasmados para a cidade vizinha cujo nome lembra crucificação. Coincidência? Ainda no carro, escutávamos a rádio que não parava de falar sobre o assassinato de uma criança burguesinha que tinha sido jogada pela janela do, se não me engano, sexto andar de um edifício em São Paulo. Já estava cansado de tanta besteira falada pelo radialista que não se considerava sensacionalista após bater, insistentemente, o mesmo assunto por mais de 30 minutos, quando chegamos até a dita cidade.
Perdidos, sem saber como chegar ao local do “evento” onde captaríamos depoimentos e faríamos algumas fotos, pedimos à cobradora da Besta que nos deixasse no local mais próximo ao campus da UFRB. Achando-nos com cara de completos idiotas, e eu ainda tenho minhas dúvidas quanto a isso, ela disse que poderia nos deixar dentro do Campus, em troca, pagaríamos o dobro do que tínhamos pagado até então.
Não sei por qual motivo resolvemos ficar por ali mesmo. Descemos e seguimos a orientação do motorista. Segundo ele, teríamos que atravessar uma pequena praça e seguirmos, em suas palavras, “toda a vida”.
Atravessamos a pracinha e caminhamos por uma rua que parecia não ter fim. Já cansados, sob um sol escaldante e um tênis que parecia incomodar, começávamos a pensar que o tiozinho do carro havia nos enganado. Parei para pedir informações a uma possível evangélica que lia a bíblia enquanto andava. Quando percebi seu olhar de repúdio para minha mão que segurava o terceiro cigarro do dia, pensei: “Agora fudeu. Ela vai falar a mesma coisa que o miserável do motorista”. Pensei certo.
Como não tínhamos mais nenhuma escolha seguimos em frente. Após 20 minutos cronometrados no relógio do celular chegamos até uma rua que dava acesso ao campus da universidade. Ao ver o portão de acesso, pedi desculpas às mães do motorista e da menina evangélica.
Ao lembrar da longa distância entre o portão central e o prédio da reitoria pensava no tênis que agora já provocava um pequeno ferimento no pé direito e no sol que parecia ainda mais forte que minutos atrás. Não tinha outro jeito. O maldito espírito jornalístico, ou a necessidade por uma nota melhor na disciplina, nos deixava dispostos a enfrentar mais esta caminhada. Primeiro asfalto, depois um pequeno atalho por dentro do mato. Enfim chegamos.
Para nossa surpresa não tinha porra de movimento nenhum. Não tinha nenhuma barraquinha, nenhuma enxada e muito menos gente que protestasse por um pedaço de terra dos 1.600 hectares pertencentes à universidade. Com um olhar de raiva que ardia com os pingos de suor que escorriam pelo meu rosto falei: “A pauta caiu”.
Decidimos então pedir um carro à Universidade que pudesse nos levar para um bairro localizado dentro dos limites do campus. Após subir e descer escadas estava sentado preenchendo um ofício de liberação do carro da instituição quando entra uma morena de corpo esbelto e olhar aflito alarmando a todos que os sem terra haviam chegado. Olhei para João enquanto ele falava sem hesitar: “Beleza, a pauta não caiu”. No mesmo momento uma outra funcionária da instituição rebateu a informação dizendo: “fecha tudo”.
Corremos para o saguão da reitoria com gravadores e máquinas fotográficas na mão em busca do melhor depoimento e da melhor fotografia. Se não conseguíssemos, nosso querido professor, a quem chamamos de General Facista, nos matava. Colhemos vários depoimentos dos manifestantes que mais pareciam refugiados do asilo municipal e tiramos ótimas fotos. Precisávamos agora de um parecer da Universidade que não tinha muito a informar, a não ser um ex-diretor do nosso campus de Cachoeira que participava de uma reunião com representantes dos manifestantes e só poderia nos atender quando terminasse a longa reunião.
2h30min depois, sentados sob o mesmo sol e perdendo as contas dos cigarros fumados já tínhamos garantido nossa carona de volta para Cachoeira. Um professor que iria buscar o carro na oficina, fazer algumas compras e pegar um óculos numa ótica passaria em instantes para nos buscar. Beleza
Distraídos com os carros que vinham pela pista asfaltada que dava acesso à reitoria na esperança de que fosse nossa carona, esquecemos do ex-diretor que a essa altura já estava longe do campus.
O sol roubava nossa sombra que tanto nos fez feliz. Já havíamos perdido as contas dos carros que surgiam no horizonte e eram intitulados de “agora é ele”. Também já não tínhamos mais quem entrevistar. Definitivamente o General ia nos matar.
João ainda se distraia com as belas pernas das estudantes de agronomia. Interessei-me por uma em especial. Usava calça jeans e uma camiseta que deixava sua bela barriga à mostra. À mostra também estava sua tatuagem, um pescador que escondia seu anzol dentro da calça da bela morena. Instigante.
João começava a falar coisas sem nexo, eu também. Acho que a fome, a sede e o sol já estava nos deixando meio loucos. Depois de um espaço de tempo em silêncio, João faz o comentário mais verídico daquele dia: “Agente só pode estar andando em rastro de corno.” Aquela frase boba me deixou rindo por minutos sem parar. As lágrimas rolavam, não sei se de tanto rir, de raiva, de fome ou de uma constatação de que ele tinha razão.
Sentados numa escada, dessa vez em meio a sombra que dava idéia de noite, e víamos as pessoas andando para um lado e para o outro que já nos olhavam com certa pena.
Resolvemos desistir da carona e seguir novamente a pé até o centro, já que nenhum dos carros que pedimos carona parou. Não agüentava mais o ferimento provocado pelo tênis que já fazia escorrer um fio de sangue manchando a minha meia branca.
A confirmação de que estava realmente andando em rastro de corno veio quando percebi que estava perdido na cidade das almas penadas. Sem querer deixar o fiel companheiro de rastro assustado fingia não estar preocupado e saber exatamente para onde estava indo. Por um momento acreditei ter encontrado o caminho certo. Lembrei do muro que a minha cabeça fragilizada pelo calor achava ser o mesmo onde parei a evangélica a quem pedi informações, segui rua à frente. Fomos parar numa mata no meio da cidade. Que diabos de cidade tem isso? A cidade do Cruz Credo.
Resolvemos andar em paralelo à mata, lembrávamos de alguma coisa do tipo quando chegamos na cidade. Conseguimos.
“Ta no inferno, abraça o capeta”. Àquele momento parecia nosso lema de vida. Paramos num pequeno bar e brindamos à retomada de percurso. A maresia batia, a carteira de cigarros comprada na manhã do mesmo dia extinguia-se. Tava na hora de ir para o ponto pegar mais uma Besta.
No caminho, achamos uma oficina mecânica com o carro do professor. Saímos correndo em direção à oficina gritando repetidamente: “Agora é ele. Agora é ele.” Realmente era, mas o professor não estava mais lá. O jeito foi voltar para a Besta. Ainda conseguimos a última que saia para Cachoeira naquele dia. Ufa!
Apertados, parando em cada esquina, com um barulho de carro velho, fedor de fumaça, demais passageiros que falavam merda e uma porta que mal fechava, estávamos indo pra casa. Uma vida assim, só mesmo quem anda em rastro de corno. Espero não estar andando para trás.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Nem sempre um dia qualquer

Hoje o dia começou da mesma forma que começou nos inúmeros finais de semana de minha vida, com festa. Esta, porém, foi especial. Tratava-se do aniversário de Arianne, uma amiga da faculdade e dos bares da redondeza.
O estilo rústico e requintado do ambiente parecia transportar todos os presentes para uma outra dimensão onde as pessoas são mais calientes, as músicas mais dançantes, a comida mais picante e a cerveja mais gelada, sem esquecer, claro, dos garçons que ao contrário de tantos outros, não deixava meu copo seco.
Era exatamente 00h01min do domingo quando levantamos e cantamos um entusiasmado “parabéns” em ritmo de samba. Não poderia esquecer, entretanto, de uma outra música cantada por um coro de, mais ou menos, 90 pessoas: “Com quem será? Com quem será? Com quem será que Arianne vai casar?”.
Olhei para o lado e avistei a aniversariante num demorado e afável abraço com sua irmã. Lembrei do longo tempo que via minha família e contei, mentalmente, os dias que faltavam para revê-la. A saudade me fez acender um cigarro e tomar um gole da cerveja que acabara de chegar, gelada.
À minha volta estavam Sarah, fiel companheira, Andréia, que teria grande importância no decorrer do dia, Larissa, uma amiga que mora comigo e que se auto-intitula minha esposa e Alana, a irmã abraçada. Os minutos iam passando rapidamente e logo me chamaram para levantar da cadeira e cair no samba, sambei.
O suor escorria e já não existia mais nenhum tipo de protocolo ou “educação”. Uma garçonete, morena, bonita, parecia ter me descoberto entre a multidão por algum motivo. Acho que se cansou de encher meu copo. Nesse momento já me entregava as garrafas para que eu mesmo fizesse isso, agradeci.
No meio da festa já não percebíamos mais a presença da aniversariante. Só depois fiquei sabendo que tinha ido dançar arrocha num bairro da periferia da cidade. Enquanto isso, sambei, cantei, conversei, abracei, beijei.
Por volta das 03h30min da manhã fui expulso da festa por uma amiga que ficou responsável pelo evento após o sumiço de Arianne. Com gritos de “sai” ela mandava que me levantasse da cadeira. Saímos e fomos à direção de um outro bar da cidade. Sentei por alguns minutos, conversei, abracei, e beijei e fui embora.
Durante o percurso paramos na ponte para esperar uma colega que nos acompanhava. Escutávamos vozes, mas não tínhamos nenhuma sugestão do que pudesse ser. Ou melhor, até tínhamos. Após alguns minutos chegou a esperada amiga e continuamos o percurso até nossas casas.
O banho quente e demorado tirou-me todo o sono. Fui para a cama e “assisti televisão” até as 6h30min da manhã, dormi. Exatamente três horas depois fui acordado pelo barulho de uma caminhada que parecia ter algum fim social e assustei-me com o ambiente do quarto desconhecido. A partir desse momento o tempo pareceu estar cronometrado no resto do dia.
11h30min. Comia uma lasanha muito ruim feita por uma amiga. Quando ela me perguntou uma nota e pediu que fosse sincero, não fui. Entretanto esta foi a única refeição de todo o dia. Despedi-me de todos, inclusive da aniversariante desaparecida e fui embora, dessa vez para minha casa.
Tomei banho e fiz a barba que já começava a incomodar. Tinha sono, mas não tinha vontade de dormir. Afinal era domingo.
Coloquei uma roupa qualquer e fui pra casa de Sarah, a fiel companheira. Chegando lá a encontrei dormindo abraçada à boneca. Sarah usava uma camisola preta, que a deixava quase despida me fazendo perceber seu belo par de pernas. Andréia, deitada na cama ao lado passou mal durante toda a noite e continuava com fortes dores no estômago. Ela tinha roubado um prato de farofa na cozinha do bar que juntava as sobras da festa. O que ela não sabia, e a revelei naquele momento de dor, era que devido à falta de cinzeiros na mesa, estava usando o prato para depositar as cinzas do meu cigarro.
15h45min. Dava socos na porta do banheiro a fim de apressar o banho de Sarah enquanto convencia Andréia de que não era o culpado pelas fortes dores em seu estômago.
Após um longo tempo de espera pude, enfim, sair em direção ao bar. Em companhia das colegas da última madrugada, ia em direção ao bar que aconteceu o aniversário. Sobraram oito cervejas, e tínhamos que cortar a ressaca. Bebemos um pouco, conhecemos os presentes e comemos o bolo. Decidimos ir para outro bar. Mal sabia eu que a boêmia me esperava.
16h20min. Sentamos à mesa e o garçom logo nos atendeu. Mais cerveja. Chovia. Os pingos que molhavam meu rosto pareciam me tirar a vontade de beber, pensava em ir para casa, ilusão.
A música alta que saia do carro já nos fazia dançar e beber mais que o esperado. Também comíamos. Alguns colegas, até então desconhecidos faziam um churrasco ao lado de nossa mesa.
23h30min. A cerveja já não parecia tão gelada. O seu cheiro não era dos melhores. Após provocações feitas pela aniversariante desaparecida tomei toda a cerveja que já nem espumava em meu copo, vomitei.
Para a minha surpresa fiquei até melhor que antes. Mais uma vez chamei Juninho, o garçom, e pedi para que me trouxesse uma outra cerveja. Tinha que tirar da boca o gosto ruim do vômito, bebi mais uma vez. Esta, por sinal, estava muito boa.
A mau lado, uma amiga me chamava para jogar sinuca, e, logo após levá-la pra casa. Fomos a procura do sinuca, não encontramos. Decidimos então...
00h00min.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

A arte de viver um boteco

Cerveja gelada, copo escorrendo. O cheiro do cigarro contrastava com o odor apodrecido de um carro que coletava o lixo da rua e passava ao nosso lado. Garotos gritando sobre o canto de um passarinho de penas pouco coloridas preso numa gaiola trançada por finos pedaços de madeira e ferro que concorria com o som da radio, carros e motos que passavam pela rua, além de um cortador de cerâmica na casa ao lado.
- Mais uma cerveeeeeja Gel! Gritavam mais uma vez os garotos.
Eram 10h01min da manhã, a rádio anunciava, e aqueles pivetes com farda da escola conversavam bobagens enquanto tomavam cerveja. Assim como eu. Não sabia ao certo o que escrever, enchia meu copo e olhava para o teto repleto de bandeirolas coloridas que pareciam persistir desde a festa do São João passado. Ao fundo das bandeirolas, que balançavam com o vento quente, uma lona preta um pouco encardida. Pequenas plantas, se não estiver enganado um coqueirinho e um feto com folhas verdes e vibrantes, estavam penduradas e presas ao teto.
Paro por mais um instante enquanto encho meu copo. Percebo um córrego de água barrenta passando por baixo da minha cadeira de plástico branco. Não sabia exatamente de onde vinha ou onde ia parar. Talvez num bueiro qualquer espalhado pela rua.
Olhava para dentro do boteco e sentia fome ao ver uma variedade de lanches na vitrine. Nas prateleiras, pacotes de salgadinhos de R$0,10 pareciam implorar para serem comprados, pois tinham que concorrer com uma infinidade de balas e pirulitos a procura de crianças engraçadinhas.
“Tudo que preciso vem de Deus”, estava escrito num pedaço de gesso em forma de coração pendurado na parede. Poderia dizer que a dona do boteco, Gel, era religiosa? Não parecia fazer o tipo daquela mulher forte, decidida, comunicativa, com pochete na cintura e calça marrom que juntava o lixo deixado pelos garotos que bebiam cerveja. A minha cerveja, por sinal, já estava quente.
Tomo um gole grande e encho o copo novamente. O cheiro da bebida parece chamar a atenção de duas moscas que a pouco tinham relações sexuais no pote de flores artificiais. A cor alaranjada de suas pétalas contrastava com o azul marinho da toalha de mesa e dos azulejos brancos que vestiam o chão e metade da parede do boteco, a outra metade, alaranjada, combinava com as flores.
- Me dá um cigaaaaarro Gel! Gritei.
Sara, uma colega que me acompanhava na mesa, pediu outro.
- A cooonta Gel! Tava na hora de voltar. Tinha que deixar a vida boêmia e badalada do boteco para voltar e digitar esta descrição que vos faço. Mais tarde voltarei, se voltarei.

À espera num certo bar.

tum tum tum tum tum tum tum tum tum.
Ela se aproxima. Não consigo manter o rítimo tranquilo de minhas pulsações. Um demorado aperto de mão , misturando o suor de longos minutos de espera pra te achar entre a multidão, à distância.
Um beijo desconcertante no rosto. Ela me pede retorno levando, vagarosamente, seu rosto até minha boca. Discreto e desconcertado, encosto meus lábios em tua face pensando se tenho mesmo que fazer aquilo.
Senta-se ao meu lado, encosta sua perna na minha e fala bobagens intercaladas por comentários que mais parecem curiosidades de figurinhas de big-big. Seu jeito mole de falar e seus olhares penetrantes me envergonha. Tento não encarar por muito tempo. Tenho medo de pensar o que realmente acontece, embora nada aconteça, sempre.
As pessoas em nossa volta conversam, são legais. A cerveja esquenta no copo.
Em certos momentos tenho a impressão de que também me olhas de uma outra forma, disfarçadamente. Aliás, será que olhas realmente para mim? Não seria, tudo isso, fantasia de meus desejos?
Rapidamente o tempo passa, você se vai. Vai, tens de ir embora.
tum tum tum tum tum tum quando se despede de mim. Me beija novamente a face, me diz mais um monte de bobagens e vai embora, mais uma vez. Acompanho teu caminhar cambaleante. Então olhas para trás. Será que me chamas? Que pensou em me dizer um "boa noite"? Ou que apenas olhou para trás, sem nem ao menos me ver? Então some na esquina aquela figura que já era um vulto, fugindo do meu alcance.
Cheiro minha mão que ainda tem seu perfume misturado ao meu suor. Pago a conta, acendo um cigarro e sigo os teus passos, num sentido contrário, calmo. tum... tum... tum...